sábado, 17 de abril de 2021

Conselheiro Ruy Barbosa

 

Conselheiro Ruy Barbosa

Discursos e Conferências

PORTO

EMPRESA LITTERARIA E TYPOGRAPHICA—EDITORA

178 —RUA DE D. PEDRO —184

1907

 

 

OUVISTES a eloqüência commovida do estadista illustre que, por aclamação vossa, preside aos nossos trabalhos. Ouvistes ao parlamentar eminente e ao festejado tribuno que lhe succederam.

Ouvistes-lhes a voz, e a cobristes de applausos. É que essa voz não é a voz de um partido, de uma opinião transitória, de um interesse local ; mas o echo de uma convicção que se agita no seio do paiz em estremecimentos prolongados; que murmura distinctamente, como lava subterrânea, nas profundezas da nação inteira, e que, comprimida por mão imprudente, começa a altear o solo aqui e alli em eminências volcanicas.

Os adoradores do nome que se diverte em provocar cataclysmas confiam no poder sobrehumano, e descansam; mas aquelles a quem Deus não tirou ainda o senso estão prevendo que as leis naturaes hão de cumprir-se.

O paiz sente em si uma enfermidade indefinível. Cumpre, portanto, atinar com a lesão, e descarná-la; cumpre acertar com o remédio, e exigi-lo; cumpre buscar os amigos interessados do abuso, e denunciá-los. Esta hoje a minha resolução, que desempenharei manifestando a verdade em sua nudez completa, offenda a quem offender; porque não vim aqui exercitar-me em reservas cortezes aos oppressores de minha pátria, mas, na phrase de Landulpho, dizer a verdade da corrupção e o nome do corruptor.

Infelizmente, senhores, do systema representativo não nos resta mais nada senão as formulas, homenagem de improba ironia que o absolutismo rende á verdade constitucional.

A primeira condição do systema representativo é que o parlamento seja independente; e nós somos governados por um parlamento cada vez mais servil.

A grande arma da liberdade política no governo parlamentar é a íiscalisação do poder legislativo sobre as despezas nacionaes; e o poder legislativo entre nós esgota sessões e sessões prorogando cegamente orçamentos atrazados e sanccionando o habito inconstitucional dos créditos extraordinários.

A feição característica de todo o povo livre é o direito de tributar a si mesmo ; e nós andamos todo o dia a pagar impostos que não votamos, sem haver alma de Hampden que levante a iniciativa da resistência popular, para dizer ao governo que a propriedade é tão sagrada perante o poder como perante o indivíduo, e que, assim como não estamos dispostos a consentir que os salteadores invadam-nos a casa para nos esvasiar as gavetas, também não cruzaremos os braços quando os agentes da autoridade, sem previa sancção nossa, vierem subtrahir-nos o suor do nosso rosto.

D'ahi vem que os orçamentos são escandolosas mentiras, que escondem sob o nome de receita os empréstimos que a nossa pobreza nos obriga a contrahi, e dissimulam com a expressão de saldos os deficits temerosos que assoberbam as nossas finanças.

A decadência parlamentar traz-me a idéa das assembléas provinciaes.

E essas de que altura em que abysmo se não têm despenhado!.

A magistratura, ultima garantia da liberdade civil nos povos que ainda se não perderam de todo, a magistratura, dependente do governo, fluctua "arrastada pela vaga das ambições políticas, ou consome, afogada pelo poder no esquecimento, uma vida amargurada de preterições implacáveis.

Os municípios, escolas primarias da liberdade, como se tem dito, definham sem energia nem consciência de si. E a centralisação, como vasta machina pneumatica assentada sobre as províncias, extrae-lhes todo o ar respíravel, em proveito da corte, que o absorve e nos asphyxia.

Não ha ninguém que não veja e que não palpe estás desgraças. A nação toda percebe que o mal é immensamente profundo, que o remédio deve ser heróico, que a applicação é urgente. Mas onde estão os que nos hão de acudir? Onde estão as providencias salvadoras?

A coroa, que é a omnipotencia nesta terra, depois de ter, mediante uma serie de offensas profundas e tenazes contra todas as liberdades populares, destruido perseverantemente até ao derradeiro extremo o nosso regimen constitucional, inaugurou o systema abominável de impedir, falsificando as reformas liberaes, que se substituam as instituições demolidas por instituições novas, productivas e vivazes.

Tal é o systema que hoje cobre com manto imperial o sr. D. Pedro II, depois de ter denunciado elle mesmo, nas falas do throno, a violência e a fraude que alteram as funcções eleitoraes neste paiz, e de nos ter autorisado, portanto, a dizer que o governo todo é fraude e violência, desde que esses dous princípios dissolventes estão na fonte.

E como é que a coroa pretende extirpar d'entre nós a violência e a fraude?

Arranca violentamente as insígnias, a bandeira de um nobre partido, bandeira que representa as tradições d'elle, suas luctas, seus soffrimentos, seus direitos adquiridos, seus compromissos para com o paiz, as esperanças do paiz no seu patriotismo, bandeira que traz ainda os vestígios indeléveis do seu sangue derramado, para ir entregar nos arraiaes adversos o grande e sublime symbolo das idéas liberaes, afim de que o injuriem cobrindo com elle projectos impopulares, e embaracem, á custa da mais enorme das fraudes, as reformas que a opinião inteira quer ardentemente.

Para demonstrar até que ponto essa anomalia detestável é incompatível com a monarchia constitucional, eu citarei a mais competente de todas as autoridades, porque é a autoridade de um rei, e de um rei illustre, não por ser rei, mas porque, sendo rei, não foi despresador de seu paiz. Citarei o exemplo da Bélgica que, quando, em 1864, um dos chefes do partido catholico, Deschamps, por quem aliás havia no monarcha certa propensão, apresentou-lhe um programma de reformas radicaes, respondeu : «Tudo isto é muito sensato, é seductor até ; mas, se ides apostar com o partido liberal a carreira democrática, onde iremos parar '? »

 Mas é que Leopoldo não concebia instituições conservadoras com o rótulo de instituições liberaes ; ao passo que a coroa no Brazil, discordando do grande rei, não hesita em conferir as honras de reformadores liberaes aos que entendem que a ordem é a immobilidade no absolutismo. E nós vamos ver de feito como Sua Magestade está muito longe de querer experimentar seriamente a corrida de doidos que assustava a Leopoldo.

Sentia-se e pedia-se a reforma da guarda nacional, instituição ociosa, oppressiva, influidora de corrupção; e a legislação com que os amigos do rei nos brindaram nesta parte corresponde perfeitamente á convicção em que a coroa está de que o melhor meio de governar é corromper; porque a presente reforma da guarda nacional, se até certo ponto attenuou-lhe a acção compressiva, manteve-lhe intacta a influencia corruptora.

O século dezenove, o desenvolvimento da civilisação christã entre nós mesmos impunham ao Brazil a suppressão da propriedade do homem sobre o homem. A lei dos nascituros foi a expressão da generosidade da coroa, o seu grande rasgo de philanthropia; mas essa reforma, composto incongruente de ideas contradictorias, essa reforma, que desampara a geração actual á desesperança com todas as suas tentações tremendas, e cria, ao lado delia, uma geração de ingênuos quasi tão envilecidos como os próprios escravos, não serviu senão para introduzir no seio das famílias, nas relações domesticas da propriedade, as perturbações que vós presenceaes todos os dias, até que d'aqui a alguns annos a questão resurja com todas as suas ameaças e todos os seus perigos.

Nem me é possível aqui deixar de lastimar, abolicionista como também sou, que os abolicionistas de meu paiz applaudissem a essa reforma, sem advertir em que era apenas um melhoramento superficial, apparente, com que o tlirono, ambicioso de colher as glorias da grande idéa, mas incapaz de assumir-lhe magnanimamente a responsabilidade, traçou protellar indefinidamente a reforma real!.

O governo resolveu também pôr termo ao recrutamento ; enfastiou-se de ser selvagem ; não quiz mais fatigar a seus agentes, nem enxovalhar-lhes as mãos fazendo agarrar os cidadãos no meio da rua e caçal-os como bestas feras. O governo viajou, e quer civilisar-se. Mas que nos trouxe da Europa o governo como lembrança de viagem? Trouxe-nos a conscripção, lei impolitica, odiosa e grotesca.

Lei grotesca; porque vem plantar neste paiz a tyrannía militar de Guilherme III, como se tivéssemos alliada contra nós a America inteira.

Lei odiosa ; porque vem agitar sobre o povo o maior de todos os flagellos que tem assolado este paiz.

Lei impolitica ; porque ha situações geographicas que obrigam os Estados a reservas ; e assim como, na Europa, uma republica, sosinha entre monarchias, está, para conservar-se, na necessidade de convencer á vizinhança de que não abriga em si ambições invasoras, assim uma monarchia militarisada no meio de um continente republicano ha de ser por força alvo de desconfianças invenciveis e causa temerária de luctas muito arriscadas.

Ah ! se o povo de minha terra ainda não repelliu terminantemente essa reforma indigna, é porque infelizmente todo o povo entre nós não sabe ler.

                Mas logo que, no meio deste povo, reu, perante Deus e perante os outros povos, do crime de indifferença, a instituição inexorável e sinistra for bater á porta de cada casa, como o anjo do extermínio nessa noite de assolação com que Deus puniu outr'ora áquelle outro povo culpado; quando os pães, estendendo os braços, não encontrarem mais os filhos ; então levantar-se-ha neste paiz um clamor que ha de subir muito acima do throno, e que Deus ha de ouvir, porque será o clamor das famílias dilaceradas, das mães feridas no intimo de suas entranhas.

E quando esse clamor pungentissimo de vozes infinitas disser : Que é de nossos filhos?  Que é da ílôr de nossas esperanças reservada por nós para as artes bemditas e moralisadoras da paz e entregue por vós aos hábitos estéreis e corruptores da vida militar? Que é d'essas almas, prole de nossas almas, onde tínhamos semeado os germens de tanta felicidade domestica e de tanta prosperidade nacional, e que, ou, embebidas por culpa vossa na vida absorvente dos quartéis, perderam-se para a familia, para a pátria, para a civilisação, ou cahiram, e vão cahir, ceifadas pelas guerras que provocaes com as vossas estultas ostentações bellicosas, com a vossa diplomacia inepta, com a vossa política de iniqüidade? .... quando soar esse clamor dos affectos mais sagrados, impiamente desconhecidos, Deus inspire e ajude o governo do meu paiz a sahir-se bem no dia da conta ; porque as mães hão de fazer-se propagandistas, e os pães brazileiros não hão de ter perdido o defeito de prezar mais ao sangue do seu sangue que aos caprichos insensatos da coroa.

Entretanto um dos meios com que o governo quer promover a nossa ventura é essa reforma, reforma falsa, como todas as reformas da coroa; reforma que não attende nem á edade, nem ao estado, nem ás vocações, nem a nada do que é inviolável nas relações sociaes e nos direitos' humanos; reforma inutil, porque não somos povo guerreiro , não temos, nem podemos ter aspirações militares, e porque a má política internacional dos governos que se têm succedido acima de nós tem sido já causadora de guerras lamentáveis.

Fizeram-se, estão-se fazendo todas estas reformas ; e, comtudo, achamo-nos agora á beira de um abysmo ainda mais difficil de sondar; porque duas conseqüências desastrosas acarretaram contra nós essas innovações traidoras : manter a oppressão antiga, multiplicando as fôrmas, as occasiões, a necessidade da corrupção, e espaçar indeterminadamente a realisação das reformas úteis, eíficazes, sinceras.

O partido liberal, o povo brazileiro, não vêem outra possibilidade de salvamento senão na reforma eleitoral. Esperemos, que a coroa a vae fazer.. Mas como ?...

Não nos traz a eleição directa, reclamada por um brado unanime no paiz inteiro, mas uma cousa que tem por objecto ostensivo dar voto ás minorias, numa terra onde as mesmas maiorias não n'o têm.

Adoptada a eleição indirecta, ainda que a sua prática seja uma verdade, e não um systema de fraude universal e escandalosa, como entre nós, o deputado não é jamais representante das assembléas primarias, representante do povo. O que elle representa são os collegios eleitoraes, é o paiz legal, como se dizia em França, isto é, uma creação artificial da lei, sobreposta, como elemento compressor, ao paiz real, á universalidade dos cidadãos. D'ahi é que lhe vem o mandato ; da soberania nacional, não !

E, se me contestam, se me affirmant que o deputado pôde, sob a eleição dupla, ser effectivamente um delegado popular, que o é muitas vezes, que deve sel-o, então respondo que a instituição do eleitorado como intermediário official, ou é uma inutilidade, ou um crime. Se pretendem que os nomes preferidos pelos collegios eleitoraes, comquanto não designados officialmente pelo povo, bão de ser todavia os nomes que o povo quizer ; se acham que os cidadãos excluidos pela primeira depuração podem, graças á pressão da palavra, da imprensa, á suprema autoridade moral da opinião, indicar, impor candidatos seus ; se entendem que é dever dos collegios eleitoraes a adhesão passiva ás predilecções populares : então reconhecem no votante do primeiro grau a capacidade de escolher o deputado ; reconhecem nas assembléas primarias a possibilidade de harmonia na escolha; reconhecem a essa escolha a idoneidade, a legitimidade, a utilidade.

Logo, ainda uma vez, a intervenção do eleitorado- ou é uma superfiuidade, ou um attentado ao direito.  Superfluidade, se chegarem a demonstrar que a vontade do povo será, sem resistências, sem obstáculos, sem perigos, a vontade dos eleitores, isto é, se reduzem os collegios eleitoraes a meras chancellarias das assembléas primarias. Attentado ao direito, se a instituição do eleitorado tem por fim difficultar a consagração legal das preferencias nacionaes, modificar as candidaturas populares, substituil-as, depural-as, neutralisal-as, isto é, se os collegios eleitoraes são para os cidadãos uma barreira, um mecanismo artificioso e falso, bastante flexível para, nas épocas anormaes, deixar passar a onda, mas assaz resistente para nos tempos ordinários a dominar também e a repulsar desfeita.

Por outra, senhores: ou os eleitores são apenas amanuenses encarregados por uma lei de registrar os nomes que resolverdes honrar com o mandato, e vós, que sabeis escrever, podeis dispensar este luxo vão, e agradecer ao legislador o desvelo impertinente; ou são curadores impostos ao vosso procedimento, proteladores officiaes de vossas vontades, embaraços permanentes ao exercício de vossa autoridade, á effectividade de vossos direitos, á sinceridade de vossa delegação — e, neste caso, vós repellis o insidioso disfarce, a curatela funesta, o papel humilhante, tanto mais indigno de uma nação livre, quanto é o próprio povo quem lavra a confissão da sua minoridade ou da sua insania elegendo os tutores a que o sujeitam.

Eu chego ao termo do meu raciocínio, e digo : a eleição indirecta tem por base o presupposto de que o povo é incapaz de escolher acertadamente os deputados.

Logo, admittido este systema eleitoral, o parlamento não só não pôde, como não deve ser o resultado de uma designação popular ; ha de, sim, e deve ser a expressão de uma escolha que, na estimativa dos adversários do suffragio directo, é mais alta, mais fidedigna, mais competente, mais pura, — a escolha commettida ao eleitorado, que paira em regiões onde a nação não chega, mas onde baixa incessante a chuva dos favores ministeriaes; onde o povo não tem entrada para a sua soberania, mas tem residência effectiva o poder para as transacções ruins em que o paiz é sacrificado onde as reformas liberaes causam pânico, mas as immoralidades douradas do governo são recebidas entre applausos  onde ha menos frontes para proteger com a indignação a liberdade violada, que para sanccipnar acurvadas as imprudências de oppressores 'sem* escrúpulos, menos braços para acudir aos cidadãos proscriptos que para implorar o pão dos empregos, menos olhos para perceber a deshonra de nossa terra que para ver os interesses de casa ameaçados.

Não me accusem de desleal ; não digam que procuro enredar com o povo os amigos da eleição indirecta, attribuindo-lhes idéas, intenções que não têm.

De feito, se é o povo quem realmente escolhe os deputados por meio dos eleitores, digo eu : suppriman o intermediário inutil, acabem com esta barreira; destruam esta muralha interposta ao parlamento e ao povo; acheguem os representantes aos representados, para que os representantes lucrem em influencia e os representados em autoridade ; porque se a acção do povo sobre o deputado é legitima, convém augmental-a, e, se o parlamento, afastado do paiz, já é util, robustecer-lhe o prestigio enraizando-o no paiz é desenvolver-lhe incalculavelmente a fecundidade.

Se não querem, portanto, apezar d'isso, a eleicão directa, é porque o intuito d'elles está em prolongar esta espoliação da soberania do povo em proveito do poder pessoal.

Apregoam que a eleição directa é um systema aristocrático, porque suppõe o censo mais ou menos restricto, como medida da capacidade, e o censo limita o eleitorado. Dizem : o povo até hoje tem o direito de voto (riso) ; com a eleição directa priva-se d'esse direito a um numero considerável de votantes.

Eu arrosto sem medo este argumento aqui deante do povo. É uma intriga e um sophisma, sophisma e intriga dos fâmulos graduados do paço. (Apoiados). Pugnarem pelos direitos do povo os servos do poder pessoal ! Elles que o têm rebaixado tanto (apoiados), que tanto o tem ludibriado (apoiados), elles em cujas mãos o absolutismo tem assumido contra vós todas as fôrmas ! (Muito bem). Só vos faltava agora, depois de tão innumeraveis affrontas, a affronta suprema de defenderem em nome da vossa felicidade e da vossa soberania a perpetuação do absolutismo !

Pergunto : quando alguma vez compareceis ás assembléas parochiaes para depor nas urnas uma cédula que o governo apurará se quizer, que ides vós nomear? Deputados? Não. Ides nomear eleitores, isto é, procuradores com procurações em branco, isto é, procuradores de si mesmos, procuradores sem responsabilidade, que ficam mais perto do poder que do povo, que se convertem quasi sempre em órgãos do poder, e que quasi nunca servem de órgãos ao povo.

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