Conselheiro Ruy
Barbosa
Discursos e Conferências
PORTO
EMPRESA LITTERARIA
E TYPOGRAPHICA—EDITORA
178 —RUA DE D. PEDRO
—184
1907
OUVISTES a eloqüência
commovida do estadista illustre que, por aclamação vossa, preside aos nossos
trabalhos. Ouvistes ao parlamentar eminente e ao festejado tribuno que lhe
succederam.
Ouvistes-lhes a voz, e a
cobristes de applausos. É que essa voz não é a voz de um partido, de uma
opinião transitória, de um interesse local ; mas o echo de uma convicção que se
agita no seio do paiz em estremecimentos prolongados; que murmura
distinctamente, como lava subterrânea, nas profundezas da nação inteira, e que,
comprimida por mão imprudente, começa a altear o solo aqui e alli em eminências
volcanicas.
Os adoradores do nome que se
diverte em provocar cataclysmas confiam no poder sobrehumano, e descansam; mas
aquelles a quem Deus não tirou ainda o senso estão prevendo que as leis
naturaes hão de cumprir-se.
O paiz sente em si uma
enfermidade indefinível. Cumpre, portanto, atinar com a lesão, e descarná-la;
cumpre acertar com o remédio, e exigi-lo; cumpre buscar os amigos interessados
do abuso, e denunciá-los. Esta hoje a minha resolução, que desempenharei
manifestando a verdade em sua nudez completa, offenda a quem offender; porque
não vim aqui exercitar-me em reservas cortezes aos oppressores de minha pátria,
mas, na phrase de Landulpho, dizer a verdade da corrupção e o nome do
corruptor.
Infelizmente, senhores, do
systema representativo não nos resta mais nada senão as formulas, homenagem de
improba ironia que o absolutismo rende á verdade constitucional.
A primeira condição do systema
representativo é que o parlamento seja independente; e nós somos governados por
um parlamento cada vez mais servil.
A grande arma da liberdade
política no governo parlamentar é a íiscalisação do poder legislativo sobre as
despezas nacionaes; e o poder legislativo entre nós esgota sessões e sessões
prorogando cegamente orçamentos atrazados e sanccionando o habito inconstitucional
dos créditos extraordinários.
A feição característica de
todo o povo livre é o direito de tributar a si mesmo ; e nós andamos todo o dia
a pagar impostos que não votamos, sem haver alma de Hampden que levante a
iniciativa da resistência popular, para dizer ao governo que a propriedade é
tão sagrada perante o poder como perante o indivíduo, e que, assim como não
estamos dispostos a consentir que os salteadores invadam-nos a casa para nos
esvasiar as gavetas, também não cruzaremos os braços quando os agentes da
autoridade, sem previa sancção nossa, vierem subtrahir-nos o suor do nosso
rosto.
D'ahi vem que os orçamentos
são escandolosas mentiras, que escondem sob o nome de receita os empréstimos
que a nossa pobreza nos obriga a contrahi, e dissimulam com a expressão de
saldos os deficits temerosos que assoberbam as nossas finanças.
A decadência parlamentar
traz-me a idéa das assembléas provinciaes.
E essas de que altura em que
abysmo se não têm despenhado!.
A magistratura, ultima
garantia da liberdade civil nos povos que ainda se não perderam de todo, a
magistratura, dependente do governo, fluctua "arrastada pela vaga das
ambições políticas, ou consome, afogada pelo poder no esquecimento, uma vida
amargurada de preterições implacáveis.
Os municípios, escolas
primarias da liberdade, como se tem dito, definham sem energia nem consciência
de si. E a centralisação, como vasta machina pneumatica assentada sobre as
províncias, extrae-lhes todo o ar respíravel, em proveito da corte, que o
absorve e nos asphyxia.
Não ha ninguém que não veja e
que não palpe estás desgraças. A nação toda percebe que o mal é immensamente
profundo, que o remédio deve ser heróico, que a applicação é urgente. Mas onde
estão os que nos hão de acudir? Onde estão as providencias salvadoras?
A coroa, que é a omnipotencia
nesta terra, depois de ter, mediante uma serie de offensas profundas e tenazes
contra todas as liberdades populares, destruido perseverantemente até ao
derradeiro extremo o nosso regimen constitucional, inaugurou o systema
abominável de impedir, falsificando as reformas liberaes, que se substituam as
instituições demolidas por instituições novas, productivas e vivazes.
Tal é o systema que hoje cobre
com manto imperial o sr. D. Pedro II, depois de ter denunciado elle mesmo, nas
falas do throno, a violência e a fraude que alteram as funcções eleitoraes
neste paiz, e de nos ter autorisado, portanto, a dizer que o governo todo é
fraude e violência, desde que esses dous princípios dissolventes estão na
fonte.
E como é que a coroa pretende
extirpar d'entre nós a violência e a fraude?
Arranca violentamente as insígnias,
a bandeira de um nobre partido, bandeira que representa as tradições d'elle,
suas luctas, seus soffrimentos, seus direitos adquiridos, seus compromissos
para com o paiz, as esperanças do paiz no seu patriotismo, bandeira que traz
ainda os vestígios indeléveis do seu sangue derramado, para ir entregar nos
arraiaes adversos o grande e sublime symbolo das idéas liberaes, afim de que o
injuriem cobrindo com elle projectos impopulares, e embaracem, á custa da mais
enorme das fraudes, as reformas que a opinião inteira quer ardentemente.
Para demonstrar até que ponto
essa anomalia detestável é incompatível com a monarchia constitucional, eu
citarei a mais competente de todas as autoridades, porque é a autoridade de um
rei, e de um rei illustre, não por ser rei, mas porque, sendo rei, não foi
despresador de seu paiz. Citarei o exemplo da Bélgica que, quando, em 1864, um
dos chefes do partido catholico, Deschamps, por quem aliás havia no monarcha
certa propensão, apresentou-lhe um programma de reformas radicaes, respondeu :
«Tudo isto é muito sensato, é seductor até ; mas, se ides apostar com o partido
liberal a carreira democrática, onde iremos parar '? »
Mas é que Leopoldo não concebia instituições conservadoras
com o rótulo de instituições liberaes ; ao passo que a coroa no Brazil,
discordando do grande rei, não hesita em conferir as honras de reformadores
liberaes aos que entendem que a ordem é a immobilidade no absolutismo. E nós
vamos ver de feito como Sua Magestade está muito longe de querer experimentar
seriamente a corrida de doidos que assustava a Leopoldo.
Sentia-se e pedia-se a reforma
da guarda nacional, instituição ociosa, oppressiva, influidora de corrupção; e
a legislação com que os amigos do rei nos brindaram nesta parte corresponde
perfeitamente á convicção em que a coroa está de que o melhor meio de governar
é corromper; porque a presente reforma da guarda nacional, se até certo ponto
attenuou-lhe a acção compressiva, manteve-lhe intacta a influencia corruptora.
O século dezenove, o
desenvolvimento da civilisação christã entre nós mesmos impunham ao Brazil a
suppressão da propriedade do homem sobre o homem. A lei dos nascituros foi a
expressão da generosidade da coroa, o seu grande rasgo de philanthropia; mas
essa reforma, composto incongruente de ideas contradictorias, essa reforma, que
desampara a geração actual á desesperança com todas as suas tentações
tremendas, e cria, ao lado delia, uma geração de ingênuos quasi tão envilecidos
como os próprios escravos, não serviu senão para introduzir no seio das
famílias, nas relações domesticas da propriedade, as perturbações que vós
presenceaes todos os dias, até que d'aqui a alguns annos a questão resurja com
todas as suas ameaças e todos os seus perigos.
Nem me é possível aqui deixar
de lastimar, abolicionista como também sou, que os abolicionistas de meu paiz
applaudissem a essa reforma, sem advertir em que era apenas um melhoramento
superficial, apparente, com que o tlirono, ambicioso de colher as glorias da
grande idéa, mas incapaz de assumir-lhe magnanimamente a responsabilidade,
traçou protellar indefinidamente a reforma real!.
O governo resolveu também pôr
termo ao recrutamento ; enfastiou-se de ser selvagem ; não quiz mais fatigar a
seus agentes, nem enxovalhar-lhes as mãos fazendo agarrar os cidadãos no meio
da rua e caçal-os como bestas feras. O governo viajou, e quer civilisar-se. Mas
que nos trouxe da Europa o governo como lembrança de viagem? Trouxe-nos a
conscripção, lei impolitica, odiosa e grotesca.
Lei grotesca; porque vem
plantar neste paiz a tyrannía militar de Guilherme III, como se tivéssemos
alliada contra nós a America inteira.
Lei odiosa ; porque vem agitar
sobre o povo o maior de todos os flagellos que tem assolado este paiz.
Lei impolitica ; porque ha
situações geographicas que obrigam os Estados a reservas ; e assim como, na
Europa, uma republica, sosinha entre monarchias, está, para conservar-se, na
necessidade de convencer á vizinhança de que não abriga em si ambições
invasoras, assim uma monarchia militarisada no meio de um continente
republicano ha de ser por força alvo de desconfianças invenciveis e causa
temerária de luctas muito arriscadas.
Ah ! se o povo de minha terra
ainda não repelliu terminantemente essa reforma indigna, é porque infelizmente
todo o povo entre nós não sabe ler.
Mas logo que, no meio deste povo,
reu, perante Deus e perante os outros povos, do crime de indifferença, a
instituição inexorável e sinistra for bater á porta de cada casa, como o anjo
do extermínio nessa noite de assolação com que Deus puniu outr'ora áquelle
outro povo culpado; quando os pães, estendendo os braços, não encontrarem mais
os filhos ; então levantar-se-ha neste paiz um clamor que ha de subir muito
acima do throno, e que Deus ha de ouvir, porque será o clamor das famílias
dilaceradas, das mães feridas no intimo de suas entranhas.
E quando esse clamor
pungentissimo de vozes infinitas disser : Que é de nossos filhos? Que é da ílôr de nossas esperanças reservada
por nós para as artes bemditas e moralisadoras da paz e entregue por vós aos
hábitos estéreis e corruptores da vida militar? Que é d'essas almas, prole de
nossas almas, onde tínhamos semeado os germens de tanta felicidade domestica e
de tanta prosperidade nacional, e que, ou, embebidas por culpa vossa na vida
absorvente dos quartéis, perderam-se para a familia, para a pátria, para a
civilisação, ou cahiram, e vão cahir, ceifadas pelas guerras que provocaes com
as vossas estultas ostentações bellicosas, com a vossa diplomacia inepta, com a
vossa política de iniqüidade? .... quando soar esse clamor dos affectos mais
sagrados, impiamente desconhecidos, Deus inspire e ajude o governo do meu paiz
a sahir-se bem no dia da conta ; porque as mães hão de fazer-se propagandistas,
e os pães brazileiros não hão de ter perdido o defeito de prezar mais ao sangue
do seu sangue que aos caprichos insensatos da coroa.
Entretanto um dos meios com
que o governo quer promover a nossa ventura é essa reforma, reforma falsa, como
todas as reformas da coroa; reforma que não attende nem á edade, nem ao estado,
nem ás vocações, nem a nada do que é inviolável nas relações sociaes e nos
direitos' humanos; reforma inutil, porque não somos povo guerreiro , não temos,
nem podemos ter aspirações militares, e porque a má política internacional dos
governos que se têm succedido acima de nós tem sido já causadora de guerras
lamentáveis.
Fizeram-se, estão-se fazendo
todas estas reformas ; e, comtudo, achamo-nos agora á beira de um abysmo ainda
mais difficil de sondar; porque duas conseqüências desastrosas acarretaram
contra nós essas innovações traidoras : manter a oppressão antiga,
multiplicando as fôrmas, as occasiões, a necessidade da corrupção, e espaçar
indeterminadamente a realisação das reformas úteis, eíficazes, sinceras.
O partido liberal, o povo
brazileiro, não vêem outra possibilidade de salvamento senão na reforma
eleitoral. Esperemos, que a coroa a vae fazer.. Mas como ?...
Não nos traz a eleição
directa, reclamada por um brado unanime no paiz inteiro, mas uma cousa que tem
por objecto ostensivo dar voto ás minorias, numa terra onde as mesmas maiorias
não n'o têm.
Adoptada a eleição indirecta,
ainda que a sua prática seja uma verdade, e não um systema de fraude universal
e escandalosa, como entre nós, o deputado não é jamais representante das
assembléas primarias, representante do povo. O que elle representa são os
collegios eleitoraes, é o paiz legal, como se dizia em França, isto é, uma
creação artificial da lei, sobreposta, como elemento compressor, ao paiz real,
á universalidade dos cidadãos. D'ahi é que lhe vem o mandato ; da soberania
nacional, não !
E, se me contestam, se me
affirmant que o deputado pôde, sob a eleição dupla, ser effectivamente um
delegado popular, que o é muitas vezes, que deve sel-o, então respondo que a
instituição do eleitorado como intermediário official, ou é uma inutilidade, ou
um crime. Se pretendem que os nomes preferidos pelos collegios eleitoraes,
comquanto não designados officialmente pelo povo, bão de ser todavia os nomes
que o povo quizer ; se acham que os cidadãos excluidos pela primeira depuração
podem, graças á pressão da palavra, da imprensa, á suprema autoridade moral da
opinião, indicar, impor candidatos seus ; se entendem que é dever dos collegios
eleitoraes a adhesão passiva ás predilecções populares : então reconhecem no
votante do primeiro grau a capacidade de escolher o deputado ; reconhecem nas
assembléas primarias a possibilidade de harmonia na escolha; reconhecem a essa
escolha a idoneidade, a legitimidade, a utilidade.
Logo, ainda uma vez, a
intervenção do eleitorado- ou é uma superfiuidade, ou um attentado ao direito. Superfluidade, se chegarem a demonstrar que a
vontade do povo será, sem resistências, sem obstáculos, sem perigos, a vontade
dos eleitores, isto é, se reduzem os collegios eleitoraes a meras chancellarias
das assembléas primarias. Attentado ao direito, se a instituição do eleitorado
tem por fim difficultar a consagração legal das preferencias nacionaes,
modificar as candidaturas populares, substituil-as, depural-as, neutralisal-as,
isto é, se os collegios eleitoraes são para os cidadãos uma barreira, um
mecanismo artificioso e falso, bastante flexível para, nas épocas anormaes,
deixar passar a onda, mas assaz resistente para nos tempos ordinários a dominar
também e a repulsar desfeita.
Por outra, senhores: ou os
eleitores são apenas amanuenses encarregados por uma lei de registrar os nomes
que resolverdes honrar com o mandato, e vós, que sabeis escrever, podeis
dispensar este luxo vão, e agradecer ao legislador o desvelo impertinente; ou
são curadores impostos ao vosso procedimento, proteladores officiaes de vossas
vontades, embaraços permanentes ao exercício de vossa autoridade, á
effectividade de vossos direitos, á sinceridade de vossa delegação — e, neste
caso, vós repellis o insidioso disfarce, a curatela funesta, o papel
humilhante, tanto mais indigno de uma nação livre, quanto é o próprio povo quem
lavra a confissão da sua minoridade ou da sua insania elegendo os tutores a que
o sujeitam.
Eu chego ao termo do meu
raciocínio, e digo : a eleição indirecta tem por base o presupposto de que o
povo é incapaz de escolher acertadamente os deputados.
Logo, admittido este systema
eleitoral, o parlamento não só não pôde, como não deve ser o resultado de uma
designação popular ; ha de, sim, e deve ser a expressão de uma escolha que, na
estimativa dos adversários do suffragio directo, é mais alta, mais fidedigna,
mais competente, mais pura, — a escolha commettida ao eleitorado, que paira em
regiões onde a nação não chega, mas onde baixa incessante a chuva dos favores
ministeriaes; onde o povo não tem entrada para a sua soberania, mas tem
residência effectiva o poder para as transacções ruins em que o paiz é
sacrificado onde as reformas liberaes causam pânico, mas as immoralidades
douradas do governo são recebidas entre applausos onde ha menos frontes para proteger com a
indignação a liberdade violada, que para sanccipnar acurvadas as imprudências
de oppressores 'sem* escrúpulos, menos braços para acudir aos cidadãos proscriptos
que para implorar o pão dos empregos, menos olhos para perceber a deshonra de
nossa terra que para ver os interesses de casa ameaçados.
Não me accusem de desleal ;
não digam que procuro enredar com o povo os amigos da eleição indirecta,
attribuindo-lhes idéas, intenções que não têm.
De feito, se é o povo quem
realmente escolhe os deputados por meio dos eleitores, digo eu : suppriman o
intermediário inutil, acabem com esta barreira; destruam esta muralha
interposta ao parlamento e ao povo; acheguem os representantes aos
representados, para que os representantes lucrem em influencia e os
representados em autoridade ; porque se a acção do povo sobre o deputado é
legitima, convém augmental-a, e, se o parlamento, afastado do paiz, já é util,
robustecer-lhe o prestigio enraizando-o no paiz é desenvolver-lhe
incalculavelmente a fecundidade.
Se não querem, portanto,
apezar d'isso, a eleicão directa, é porque o intuito d'elles está em prolongar
esta espoliação da soberania do povo em proveito do poder pessoal.
Apregoam que a eleição directa
é um systema aristocrático, porque suppõe o censo mais ou menos restricto, como
medida da capacidade, e o censo limita o eleitorado. Dizem : o povo até hoje
tem o direito de voto (riso) ; com a eleição directa priva-se d'esse direito a
um numero considerável de votantes.
Eu arrosto sem medo este
argumento aqui deante do povo. É uma intriga e um sophisma, sophisma e intriga
dos fâmulos graduados do paço. (Apoiados). Pugnarem pelos direitos do povo os
servos do poder pessoal ! Elles que o têm rebaixado tanto (apoiados), que tanto
o tem ludibriado (apoiados), elles em cujas mãos o absolutismo tem assumido
contra vós todas as fôrmas ! (Muito bem). Só vos faltava agora, depois de tão
innumeraveis affrontas, a affronta suprema de defenderem em nome da vossa
felicidade e da vossa soberania a perpetuação do absolutismo !
Pergunto : quando alguma vez
compareceis ás assembléas parochiaes para depor nas urnas uma cédula que o
governo apurará se quizer, que ides vós nomear? Deputados? Não. Ides nomear
eleitores, isto é, procuradores com procurações em branco, isto é, procuradores
de si mesmos, procuradores sem responsabilidade, que ficam mais perto do poder
que do povo, que se convertem quasi sempre em órgãos do poder, e que quasi
nunca servem de órgãos ao povo.
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